Nos caminhos da Amazônia

Não basta ter uma moto e a vontade de viajar para a floresta. Veja o que mais é necessário para conhecer a região Norte do Brasil

23/12/2022 16:20

Por Luís Antônio Jordão Lobo – Lobo da estrada.

Pela sexta vez parti sozinho e agora escolhi um dos lugares mais inóspitos do nosso gigante e belo Brasil, a floresta Amazônica famosa pelas histórias intrigantes do garimpo. Amarrei nos alforjes da minha moto meus sonhos, apontei o guidão para o norte e parti da garagem da minha casa, em Espírito Santo do Pinhal-SP. 
De todas as estradas oficiais da região Norte, que passam pela floresta, me faltava conhecer a parte mais difícil da Rodovia Transamazônica, no trecho entre Rurópolis-PA e Lábrea-AM. E eu sabia que era ali que meus sentimentos citados acima seriam aflorados.

  
Pois bem, a icônica BR-230 Rodovia Transamazônica foi construída durante o militarismo e tinha a nobre missão de pegar os flagelados da seca e popular a floresta. Tem seu início em Cabedelo-PB e termina na distante Lábrea-AM. O trecho que eu faria seria entre Rurópolis-PA indo até o fim da estrada, e nesse trajeto eu queria conhecer as cidades/lugarejos famosos por coisas boas e outras nem tanto, mas que muitas vezes são os únicos pontos de apoio para quem se aventura por “aquelas bandas”. 

A preparação da minha moto Honda XL700V Transalp, ano 2014, para esta viagem foi bem simples, vez que estava com apenas 15.000 quilômetros rodados, com pneus e bateria recém trocados, então só troquei óleo do motor e filtros de ar e óleo. A relação que é um item de suma importância em longas viagens – especialmente se rodarmos bastante em estradas de terra - também não me preocupava vez que normalmente roda quarenta mil quilômetros. Contudo, sempre levo um pote de graxa branca e diariamente, ao parar de rodar, engraxo a corrente. Esta é minha segunda Honda Transalp, e com a primeira do ano de 2012, rodei mais de 160.000 quilômetros pela América do Sul, sem nunca ter tido problemas, portanto uma moto que muito me agrada e, por ter a fabricação findada no Brasil, teve significante queda em seu preço, tornando-se uma excelente opção custo/benefício se comparada com as outras big trails. Mas, para essa jornada em especial, tinha um ponto a me preocupar. Por ela ter um tanque de combustível de “apenas” 18 litros, com autonomia de 300, 350 quilômetros dependendo a aceleração, no trecho de 1.500 quilômetros de estrada de terra na floresta Amazônica, onde a distância de um ponto de apoio a outro chega à 400 quilômetros, eu necessitaria de um galão reserva de gasolina. E acreditem, meus cálculos estavam certos, se não fosse isso, poderia estar lá até hoje, aliado ao fato de que o combustível que as vezes conseguimos lá, de forma clandestina, é adulterado, o que diminui muito o rendimento. 

   
Na estrada

De São Paulo até o entroncamento com a Transamazônica segui pela BR-163 Cuiabá – Santarém. Nesse trevo importante da nossa malha rodoviária, onde existem vários postos de gasolina, uma coincidência mágica aconteceu, servido de prenúncio de uma jornada inesquecível, um grande amigo “virtual” que também se aventurava com sua moto pelo norte brasileiro, Protásio Medeiros, me contactou dizendo que estávamos “próximos” e pensamos em nos encontrar, mas por mais que queríamos, por fatores de roteiros e onde cada um estava naqueles dias, acabamos deixando o plano de lado, mas é aí que vem Deus com nossos destinos já escritos. Naquele trevo grandioso, em meio a tantos postos de combustíveis, eu nem precisando abastecer, escolhi entrar em um que nem era no meu caminho certo, e ao parar na bomba de combustível, lá estava meu irmão das estradas Protásio abastecendo. sensacional esse encontro não marcado!

Após meia hora de conversas e abraços cada um seguiu seu rumo, e eu “quebrei a direita” na BR-230 já sem asfalto e segui direção à Rurópolis, onde iniciava minha sonhada viagem. Saí da rodovia e tomei destino por uma estrada bem ruim até o distrito de Fordlândia-PA nas margens do Rio Tapajós, criado por Henry Ford em 1928 para extração de látex para fabricação dos pneus dos seus automóveis “fordinhos”. Tudo foi trazido de navio e grande parte ainda está lá, galpões, a famosa caixa d’agua (que ainda fornece água para todos os moradores), ferramentas, o primeiro sistema de hidrantes do Brasil e toda uma história de desenvolvimento brasileiro de acordo com os ditames americanos da época. Realmente um lugar inspirador para qualquer moto aventureiro.

Segui então pela poeira da Transamazônica sentido Oeste e depois de Itaituba-PA a estrada é pelo Parque Nacional da Amazônia, onde literalmente passamos dentro da mata original, paisagens lindíssimas, animais cruzando nossa frente, cheiros e sons muito característicos e diferentes para nós do Sudeste. Próximo ao meio-dia estacionei minha moto em lugar de muitas histórias que ouvi pesquisando de aventureiros que vieram antes de mim, o restaurante Amigo Garimpeiro, que é um ponto muito importante de apoio, vendendo até combustível, vez que está em um ponto isolado e de mais de quatrocentos quilômetros de estrada de terra sem abastecimento. Quantas fotos desses outros desbravadores eu fiquei olhando e me imaginado naquela placa ainda original de quase meio século, e estava ali no meu celular, a minha foto! Que sensação mágica! Almocei e segui, pois, ainda queria chegar em Jacareacanga-PA de dia. No fim da tarde chego ao trevo recém asfaltado desta outra famosa cidade de garimpeiros e muita prostituição, que fica há oito quilômetros da BR-230, mas que é um ponto de apoio com hotel e combustível. A placa original da cidade, cravejada de tiros, deu lugar a um portal colorido e moderno, mas estar ali e tirar uma “chapa” também teve gosto especial. Me disseram que o nome vem da quantidade de jacarés que havia ali no início, que não se via um único jacaré, sempre no mínimo de dois, que formam uma canga de jacarés, daí, Jacareacanga. De fato, na estátua do Cristo tem dois deles.

Saudade

Nesse ponto, completamente isolado em meio a floresta, de estrada de “chão” e já com trânsito deserto, enquanto abastecia o tanque da moto com a gasolina do galão reserva, vi o quão difícil pode ser o controle mental com relação aos nossos sentimentos, senti uma saudade muito forte da minha filha Luísa, de dois anos. Algo que nunca havia sentido nessa intensidade, doía realmente. Me lembrei dela, em nossa despedida, me pedindo de presente da floresta, um “urso grande”. Respirei fundo e segui firme. 
Parti no outro dia, passei por três aldeias indígenas, mas não visitei nenhuma, já tive problemas com índios em outras viagens e achei melhor evitar.

Nesse trecho a estrada estava bem esburacada e com algumas erosões grandes, que se caísse não conseguiria tirar a moto sozinho (imaginem, a moto pesa 230 quilos) e fatalmente teria danos que poderiam comprometer a viagem.  Seguindo com cautela cheguei à divisa dos estados do Pará e Amazonas, onde parei e vivi aquele momento de êxtase, afinal estava eu em um lugar do mapa que tanto estudei. Mais à frente me deparei, e obviamente parei, com o estabelecimento chamado Café Santo onde comi carne de anta com café e arroz, coisas da floresta. O dono, seu Claudionor não me cobrou nada, então dei a ele algumas guloseimas que tinha comigo pensando na possibilidade de ter que dormir na estrada. Muito bom conhecer e conversar com esses sobreviventes da mata. Adiante, cheguei na balsa do rio Sucunduri, onde, graças a Deus encontrei gasolina. Ali existe um povoado, mas nada além do combustível, que já está ótimo. Segui por uma estrada melhor e fui terminar a “tocada” em Apuí-AM, onde passei a noite.

 

 

Partimos cedo – a moto e eu – empolgados vez que chegaríamos no lugar mais icônico para os que se aventuram pela rodovia Transamazônica, o bar Matá Matá. E depois de duas horas rodando na estrada de terra em meio as grandes árvores e diversos animais, praticamente sem cruzar com ninguém, estacionamos defronte ao bar. Trata-se de um local onde os garimpeiros faziam a divisão do ouro que por inúmeras vezes acabaram em mortes. Está lá desde a construção da rodovia, e a atual proprietária, a Sra. Sirley trabalha lá há quarenta e três anos, e presenciou muitos episódios que fizeram a fama do local. Ela me contou duas versões sobre o nome curioso, uma que vem pelas mortes de uma época onde a lei da selva predominava, “era na bala as coisas aqui..” e outra de que no rio ali na frente existe uma cachoeira que mata quem se arrisca nela. Ouvindo moradores de outras localidades próximas, escutei que ouve um fatídico episódio de divisão de ouro de uma pepita grande, de mais de quilos, onde vinte e nove pessoas morreram. Então o “Bar da Mata” ficou conhecido como “Bar da Mata que Mata” e depois apenas “Matá Matá”, como é até hoje. Seja qual for a verdadeira versão, me emocionei muito em ali chegar sobre minha moto, um lugar especial onde sonhei por anos estar e tirar uma foto. E mais, a conversa com a Sra. Sirley, que me tratou como carinho de mãe, imaginando e perguntando sobre o que aquela brava mulher já passou naquele lugar, é algo inexplicável. Agradeci e voltei para a estrada pois não queria ficar esperando por duas horas a balsa para chegar em Humaitá-AM e ainda tinha pela frente quase duzentos quilômetros. E segui por estrada ruim e boa até chegar no rio Madeira. Cheguei atrasado oito minutos, mas a balsa estava mais atrasada ainda. Tudo certo, atravessei e passei a noite.

Destino

Restava então chegarmos no destino mais esperado, Lábrea-AM, onde está o fim da BR-230. Eram só mais duzentos e quinze quilômetros, e partimos cedo muito empolgados. Porém, a empresa que está fazendo a manutenção da estrada mexeu na terra, deixando-a bem fofa em dois trechos de dez quilômetros cada, o que dificultou muito nosso deslocamento. Quase caímos por diversas vezes, calor e tensão que consumiam demais. E o pior, sabíamos que o único caminho de volta seria aquele. Mas seguíamos empolgados até que entramos no lugar mais longínquo que se pode chegar por estradas oficiais no coração da floresta Amazônica, a distante Lábrea! O calor passa, o cansaço vai embora e uma emoção muito forte vai tomando conta do nosso coração, e depois de alguns metros da bela igreja avistamos a placa do fim da rodovia Transamazônica!!! 

Que sensação mais maravilhosa, estávamos lá, a placa, a moto e eu!! Chorei agradecendo a Deus e meu Padre Cícero (que fiquei devoto em outras viagens) por me protegerem e me permitirem chega ali realizando mais esse sonho!! Chorei pensando na minha filha e na minha mulher Juliana que ficou cuidando de tudo em casa permitindo assim que eu partisse. Tirei várias fotos, fiz vídeos e fui até a margem do rio Purus, onde se percebe uma preparação para balsa, vez que o projeto inicial da rodovia previa chegar até Cruzeiro do Sul-AM, mas por algum motivo parou ali. Emoção controlada almocei, conversei com moradores, abasteci e voltei para a estrada e para minha grata surpresa, os trechos de terras mexidas estavam socados, facilitando bastante a viagem de volta. Um pouco antes de Humaitá a BR-230 cruza com BR-319 – Rodovia Fantasma, que liga as capitais Porto Velho-RO e Manaus-AM, também com longos trechos de terra, deserta e em condições bem ruins. Tem esse apelido porque a floresta quase a engoliu com a falta de manutenção nos últimos trinta anos, não sendo possível ser vista via satélite. Não aguentei de saudade e acabei rodando cinquenta quilômetros sentido Manaus e voltando, matando a saudade de quando a atravessei em 2019, e fiquei feliz ao ver que está em condições de tráfego muito melhores.

 
Amarras
Nesse momento da viagem me dei conta de que não sabia mais o dia do mês nem o dia da semana que estava, atingindo assim, o objetivo das minhas viagens, esquecer as amarras da rotina. Em Porto Velho-RO, na companhia de um dos maiores difusores do motociclismo raiz do país, meu irmão Antonio “Andariho da Amazônia”, passamos o dia conhecendo aquela capital e suas imperdíveis atrações históricas, como a Ferrovia Madeira Mamoré e o Memorial ao Marechal Cândido Rondon. Ambos passeios sem custo que valem muito a pena para quem valoriza nossa história, principalmente a fatos ligados a grandes expedições que desbravaram nosso território.
E assim segui no caminho de volta para casa, atravessando Rondônia, Mato Grosso e Mato grosso do Sul até São Paulo, acompanhado de inúmeras reflexões de tudo o que vivencie. Não há como não citar o medo de estar sozinho em um lugar inóspito e deserto, que por várias vezes desafia nossa mente. Mas, graças a Deus o sonho é maior que o medo. 

E com segurança e com coração repleto de alegria, chego em minha casa em Espírito Santo do Pinhal-SP, onde minha família me esperava. Sensação melhor, desconheço. Ah, e o “urso grande” que a Luísa me pediu, viajou em minha garupa desde Humaitá-AM. Que prazer vê-la desembrulhando o presente!
Vi coisas que nunca havia visto, senti cheiros e gostos que nunca havia sentido. Conheci pessoas que em minutos de conversa se tornaram amigos para sempre. Senti dores, senti medo, senti calor e frio, mas senti acima de tudo alegrias, amores, realizações em justamente vencer esses medos e problemas que surgiram. E mais que isso, senti aflorar emoções, sensações e sentimentos que só uma viagem solotária te faz sentir. Sou muito grato a Deus por estar sempre no guidão da minha moto nesses nove mil quilômetros de estrada. 

Eu fui e vi, e isso ninguém, jamais, tira de mim.
Essa viagem é dedicada a Luísa. 
A vida é maravilhosa!  

 

APLICATIVO



INSTAGRAM