Velocidade, dinheiro e fraude: o escândalo da nova Norton

As belas e velozes Norton voltaram a ser fabricadas em pequeno número na Inglaterra, mas agora ganham atenção pelas fraudes na empresa

08/04/2020 18:04

A inglesa Norton tem uma história centenária quase tão antiga quanto a das motos. Foi vitoriosa nas pistas de corrida, sofreu com a ascensão das japonesas e sucumbiu nos anos 1970 antes de ser ressuscitada por um empresário de outro setor. 

Essa história tem muitos pontos comuns com a também britânica Triumph e outras marcas europeias, mas a Norton voltou a ser fabricada longe do “mainstream”. Nos últimos anos Stuart Garner abriu uma pequena fábrica ao lado do lendário autódromo de Donington Park para produzir séries limitadas usando componentes de primeira linha.

Começou a ser formada uma base de modelos apreciada por conhecedores, com as café racer Commando e Dominator 961, a esportiva V4 RR e a scrambler Atlas 650. Mas ao longo dos últimos anos a “nova” Norton entregou menos de mil motos, montadas ao ritmo anêmico de 1,5 unidade por semana. 

Lançamentos adiados, atrasos nas entregas já pagas e fornecedores que deixaram de trabalhar com a empresa por falta de pagamento são apenas a ponta do iceberg. A administração de Garner como CEO é acusada de conduta antiética e diferentes fraudes que levaram a Norton à insolvência. 

Na situação atual a prestigiada marca britânica está sob intervenção a pedido do banco credor Metro, enquanto Garner é mantido afastado para que auditores apurem a situação da empresa. O fato é que a Norton não tem caixa para honrar compromissos assumidos, tanto encomendas de motos quanto dívidas com cerca de 500 fornecedores. Resta aos administradores designados se desfazerem dos ativos, inclusive os direitos sobre a marca. 

Depois da intervenção, testemunhos de clientes, ex-funcionários, um ex-sócio e acionistas minoritários começaram a levantar mais acusações contra Garner. As queixas apontam uma conduta fraudulenta desde o início das operações, envolvendo até falsificação de assinaturas de sócios para o fechamento de negócios e obtenção de financiamento. 

Antes da Norton Stuart Garner era gestor na empresa da família, e só ganhou holofotes após anunciar o retorno da marca ao Tourist Trophy da Ilha de Man. Mera jogada de marketing com um protótipo inacabado. Passou a ser visto como um milionário excêntrico e visionário investindo no renascimento da tradicional marca britânica, com elevados padrões técnicos. 

A seguir, protótipos de modelos exclusivos a preços elevados começaram a ser anunciados com antecedência para captação de recursos. Agora se sabe que a conduta era temerária porque ainda restava desenvolvimento a ser concluído e não havia recursos suficientes para investimento em cada projeto, o que resultava em longos atrasos nas entregas. 

Último lançamento da marca, a família 650 apresentada em novembro de 2018 dependia de uma expansão na fábrica que nunca foi concluída. O propulsor de 2 cilindros aproveitaria uma das bancadas do V4 existente para equipar novos modelos scrambler e supersport. 

Num dos capítulos mais recentes dessa história conturbada, Garner afirmou no começo deste mês ter vendido os direitos de produção do propulsor mais antigo da marca a uma fabricante chinesa. O negócio envolvendo o bicilíndrico a ar da Commando 961 teria ocorrido no final de 2019, portanto dias antes da intervenção. Patentes e ferramental deveriam ser entregues à Jinlang e dessa forma não seriam mais ativos da empresa à disposição dos credores. 

Mas ainda fica pior, porque o problema da Norton não é só de caixa. Os funcionários não conseguem efetuar resgates dos fundos de pensão da empresa, e Garner não compareceu a uma audiência para prestar esclarecimentos sobre possíveis desvios. Um montante de 14 milhões de libras teria sido utilizado para financiar a própria Norton, e ainda não está claro se este foi o destino de fato. 

Os auditores já identificaram práticas de contabilidade fraudulenta, acúmulo de tributos devidos, desvio de recursos da empresa para outras finalidades... Enquanto isso, o ex-CEO mora na suntuosa mansão do século 18 chamada de Donington Hall, que em tese seria a sede da Norton. E tem à disposição seis Aston Martin comprados em nome da empresa. 

Ele se limita a declarar que está “devastado” pela situação, alegando que é apenas mais uma vítima dos administradores dos fundos de pensão e que também “perdeu tudo”. Justifica a situação da Norton com o Brexit, que teria criado um ambiente difícil para os negócios. 

Stuart Tiller, engenheiro de 74 anos que foi o primeiro sócio de Garner, diz que ele sempre operou com recursos de terceiros em vez de investir os próprios. Tudo começou quando entrou como sócio na tradicional fabricante de chassis esportivos Spondor, de Tiller, em 2008. O know-how seria usado nas futuras Norton, depois que Garner empenhou os ativos da Spondor por cerca de 1 milhão de libras para comprar os direitos da marca. O resto da história, agora você já sabe. 

Reputação construída nas pistas                

Assim como outras grandes fabricantes inglesas a Norton surgiu na virada do século 19 para 20, na região industrial de Birmingham. James Lansdowne Norton começou em 1898 como fabricante de componentes e passou à produção das motocicletas usando motores de terceiros. 

Já na primeira década do século 20 começou a construir a fama de sua marca vencendo corridas. Em 1907, a primeira edição do Tourist Trophy da Ilha de Man foi vencida com uma Norton utilizando motor fornecido pela Peugeot. O propulsor próprio já estava em desenvolvimento, mas só seria lançado no ano seguinte. 

No TT de 1924 a Norton se notabilizou pela primeira vitória com velocidade média ao redor de 100 km/h. Também venceu a categoria sidecar com a Model 18 de 500cc. Nos anos 1930 as Norton venceriam sete vezes a categoria principal de 500cc. 

Após a interrupção causada pela 2ª Guerra Mundial, o sucesso na categoria principal do TT continuou com total domínio da prova de 1947 a 1954, especialmente com a Norton Manx. Em 1949 foi adicionada à linha a bicilíndrica Dominator, uma resposta necessária diante da concorrência italiana (Gilera e MV Agusta) e britânica (AJS e Triumph) no primeiro ano de Campeonato Mundial de Motovelocidade. A Norton terminou na 5ª posição.

Isso foi antes da criação do chassi “featherbed”, instalado primeiramente na Manx e depois na mais leve Dominator. O novo chassi foi o paradigma da época em handling, se beneficiando de experimentos da Norton ao mover o posicionamento do motor na estrutura para chegar a um ajuste fino.

Consolidou-se a fama de que a Norton tinha o melhor chassi e assim surgiram inúmeros híbridos preparados com outros motores, que supostamente uniram o melhor de cada fabricante, caso das chamadas Triton, o motor Triumph aclamado pela potência em um chassi featherbed Norton.      

Na década de 1950 a Norton estava em dificuldades financeiras e foi vendida para o grupo proprietário de AJS e Matchless. Retiraram-se das corridas em 1954 e um ano depois lançaram a Dominator de 600cc. A escalada de cilindrada e potência se acelerou na década seguinte com Manxman 650 e Atlas 750, cujo principal mercado era o americano. 

Esse aumento de cilindrada acentuou um indesejável nível de vibração. Foi desenvolvimento um novo chassi com coxins de borracha sob o motor para atenuar o problema na nova Commando 750, de 1969. O cenário já era de declínio nas vendas causado pela concorrência japonesa, que inovava para tomar mercado das inglesas. 

A Norton fechou as portas em 1976, numa época em que o governo britânico tentava salvar a indústria automotiva local por meio de subsídios e estatizando participações societárias. Fusões como a da Norton com Triumph e BSA (que já operavam juntas para economia de recursos) não bastaram para salvar a marca da falência. 

Os direitos sobre o nome passaram por diversas mãos nos anos 1980 e 1990, resultando em projetos de novos modelos que não vingaram até a compra por Stuart Garner. 

 

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